Iniciativas de destaque na transição agroecológica identificadas pela Cooperativa CEDRO no Programa de Assessoria Técnica, Ambiental e Social à Reforma Agrária no Rio de Janeiro – Dezembro/2005 a Agosto/2009
A caminhada no processo de transição agroecológica no Estado do Rio de Janeiro tem se efetivado por múltiplas trilhas de elevado grau de dificuldade, algumas vezes interrompidas, n’outras reunidas em trechos alargados e estimulantes, como bem se pode associar aos Encontros regionais, estaduais e temáticos que têm sido promovidos por seus atores e respectivas parcerias na dedicação ao fortalecimento de referências autônomas para as relações de produção na agricultura e de fundação na sociedade.
Este artigo pretende registrar duas dessas experiências que estão se desenvolvendo e que no processo de prestação de serviços ao Programa de Assessoria Técnica, Social e Ambiental – ATES, do INCRA, pela Cooperativa CEDRO, tivemos a oportunidade de vivenciar e de facilitar a interação com o conjunto do Movimento pela Agroecologia em eventos de âmbito estadual e no segundo ENA – Recife/2006.
As experiências de “Maria Baixinha”, em Conceição de Macabu e da Brigada Ambiental coordenada pelo “Gilmar Barbudo” em Macaé têm em comum a inserção em realidades de assentamentos de Reforma Agrária na região Norte Fluminense; ambas as áreas oriundas de desapropriação de propriedades de Usinas de Açúcar, que nos anos 1970/1980/1990 intensificaram o processo de exaustão dos solos pela sequência de monocultivos de Cana, com mecanização; manejo químico e fogo precedendo o corte das lavouras.
Destacam-se essas duas experiências – A CEDRO no período de dezembro de 2005 a agosto de 2009 trabalhou com 850 famílias em oito Projetos de Assentamento. – no caso da Maria, pela força do significado do seu trabalho, Mãe e provedora de Família, marginalizada no sistema da Reforma Agrária que não lhe reconhece um registro de assentada, tampouco créditos ou recursos oficiais e mesmo assim tem em seu lote de produção o reconhecimento de seus pares de que trata-se de uma referência de minoria, em matéria de subsistir do que produz, além das práticas desenvolvidas terem recuperado água e parte da diversidade em uma área degradada;
No caso do Gilmar e de sua família pelo engajamento coletivo nas ações de promoção do meio ambiente, como na instituição da brigada ambiental “anti-incêndio”, com apoio da Defesa Civil do Município de Macaé; ou do empenho para a articulação de produtores e articulação de ações campo-cidade, como na coleta de enxames de abelhas na Cidade de Macaé, para reprodução de colméias em lotes do Assentamento, numa atuação que deflagrou novos ciclos de organização no assentamento.
Ambos os produtores vivenciaram as atividades da articulação pela Agroecologia no Estado do Rio de Janeiro, Dona Maria desde 2006 e Gilmar mais intensamente entre 2008 e 2009, tendo sido sua atuação no Assentamento fundamental para a realização do Encontro Regional de Agroecologia, em outubro de 2008. As respectivas experiências estão identificadas no rol dos promotores da agroecologia no Rio de Janeiro.
Maria Pereira Braga é natural do estado de Goiás, onde nasceu em 1960. Desde criança trabalhou no campo, veio para o Rio de Janeiro na expectativa de melhorar de vida; conseguiu serviço no corte de cana, para a antiga Usina de Carapebus - Norte Fluminense. Pela força e pela graça, se destacou nos ciclos seguintes quando passou a exercer papel de “gato” ou Coordenadora de turma – papel geralmente associado aos homens. Teve três filhos (dois ainda residem com ela) e em 1996 vivia em relação conjugal com um segundo parceiro quando, através de uma ação organizada pelo Movimento dos Trabalhadores Sem Terra, participou da ocupação das fazendas Capelinha I e II, sendo contemplados pelo Programa Nacional de Reforma Agrária-PNRA com um lote de 17 hectares na Gleba B do Projeto de Assentamento Capelinha, instituído em Conceição de Macabu.
Maria viu a oportunidade de conquistar a posse de uma área para produção e se dedicou ao acampamento, nascia a Maria Baixinha de Capelinha. Embora registrada no Sistema de informação do INCRA – SIPRA como cônjuge, o titular do Lote era o seu companheiro; em nome deste saíram todos os créditos e recursos do INCRA, PROCERA e PRONAF. Estes recursos foram investidos em gado de leite e mesmo em atividades externas ao lote. Sem influência na aplicação dos recursos, Maria se dedicava a plantios diversificados, adotando o feijão guandu e o feijão de corda como plantas pioneiras no processo de produção e de recuperação dos solos. Com plantas frutíferas e nativas procurava recompor a vegetação de uma grota, donde ressurgiram nascentes de água.
Ao final dos anos 1990 separou-se do companheiro, levando a uma divisão informal do Lote, o que tem trazido transtornos, inclusive judiciais, com uma ação de “reintegração de posse” impetrada pelo ex-companheiro contra ela na Justiça Estadual, no Foro de Conceição de Macabu.
O sistema de produção adotado pela Maria Baixinha é movido pela força de trabalho familiar: ela, sua filha Ana e suas três netas (Ana é mãe solteira) realizam as atividades produtivas. Maria e Ana trabalham nos plantios e nas colheitas; todas ajudam na debulha do guandu e do feijão de corda (Caupi) que, na safra, semanalmente são empacotados em sacolas de ½ Kg e conservados na geladeira para serem levados à feira de Macaé que se realiza aos sábados. O filho ajuda com um reboque, ao que leva as bolsas de mercadorias até o ponto de ônibus; Maria se desloca de ônibus até a feira, onde monta sua barraca e organiza seus produtos para a venda.
Os feijões Guandu e Caupi se tornaram “carros-chefe” de uma produção que se diversificou a partir da melhoria do solo na área cultivada. Hortaliças, temperos, laranjas, ovos e mesmo frangos, sob encomenda, passaram a compor o cardápio de produtos oferecidos na bancada da Feira em Macaé. No rumo do Sítio uma cerca viva com árvores de Sábia (sanção do campo) agrega elementos de silvicultura à economia do Lote. Todas as atividades são desenvolvidas sem o uso de agrotóxicos o que revela um valor a mais na experiência da D. Maria.
No Projeto de Assentamento Capelinha, face à extensão da degradação ambiental herdada da antiga Usina e da forma de manejo com o solo, é comum o discurso de que nada se produz no assentamento. Durante realização dos trabalhos do Plano de Recuperação do Assentamento, CEDRO/2006, Dona Maria Baixinha foi referencia de 04 entre 09 produtores distribuídos pelas cinco Glebas do Assentamento, em dinâmica de “informantes qualificados”, como exemplo em que o beneficiário conseguia sobreviver do trabalho do Lote. Este trabalho indicou que 25% das famílias do PA encontravam-se nessa condição.
O diferencial no caso da Senhora Maria Pereira Braga – D. Maria Baixinha – é a sua determinação e a força de trabalho; o que influenciou na conquista do espaço na feira de Macaé (outro município e que por várias vezes tentou negar o acesso de Dona Maria à feira); como está sendo no caso da sua manutenção na terra: casa e lote, desassegurada por uma burocracia que não consegue lhe incluir plenamente no PNRA. A atenção recíproca com os filhos e com as netas, além da disposição em receber vizinhos e outros agricultores para dar o seu depoimento de vida e de trabalho, também compõe este quadro diferencial.
Em 2006 a D. Maria participou do 2º ENA/ Recife, onde apresentou sua experiência sob o título: “Contornando as adversidades de 60 anos de cultivo de Cana-de- açúcar”, relacionada aos temas “Agrobiodiversidade e Reforma Agrária”. Ao retornar do Encontro descobriu que todo um eito (uma Linha) de árvores de sabiá – que ela havia plantado e cuidado – fora cortado e vendido pelo ex-companheiro, na sua ausência. Seu lote tem sido visitado por distintos grupos do Movimento agroecológico do Rio de Janeiro.
Gilmar Monteiro, o Barbudo, ingressou no processo da Reforma Agrária através das discussões promovidas pelo Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Rio das Ostras, nas reuniões de planejamento de ocupação das áreas da fazenda Cabiúnas, que pertencia à Usina de Carapebus, desativada no final dos anos 1990. Seu principal papel no início do assentamento era fazer a “vigia” por uma das coordenações instituídas pelo processo de ocupação.
A CEDRO nos serviços de Assessoria Técnica Social e Ambiental – ATES de 2005 a 2009, desenvolveu uma sequência de trabalhos que proporcionou vários encontros interessantes, como com ex caçadores e trabalhadores que conheceram a região do Assentamento – ainda na década de 1970 – uma região de muita mata e com presença de animais silvestres (o caso do Sr Zé Onça, assentado na Gleba Maria Amália). O ímpeto da Usina pela expansão da cana-de-açúcar removeu a vegetação original e pela sucessiva prática da monocultura intensiva levou a região a uma situação de avançado estado de degradação.
O Assentamento foi criado em março de 2005 e a referência das famílias sobre os processos de produção e de ocupação da área se pauta pelas mais diversas influências, seja a inserção econômica nas cadeias produtivas locais: leite e a própria cana-de-açúcar; a subsistência, a experimentação de novas lavouras: feijão de corda (caupi) que tem se mostrado de fácil domínio na lógica das famílias e ainda, pelas propagandas de mercado e aspiração a investimentos de alta tecnologia, como avicultura com matrizes de elevada qualidade, repleta de problemas sanitários, ao que convivem com vizinhos que fazem criação de aves “Pé duro”.
Também se influenciam pelas parcerias institucionais, que apresentam soluções como monocultivo de feijão preto e/ou áreas demonstrativas de agrofloresta, ou como programas de capacitação com recursos da Petrobras; além da implementação dos projetos do INCRA, que concluiu o parcelamento em 2008, e em 2009 deflagrou a aplicação do Crédito de Habitação, para a construção das casas – o que está praticamente concluído.
Nesse cenário de “efervescência cultural” surge o grupo que, em parceria com a Defesa Civil do Município de Macaé, passa a exercer o papel de “Brigada Ambiental”, buscando mínima organização para combate a incêndios – que continuavam a acontecer nas áreas do assentamento e que vinham consumindo as poucas áreas de remanescentes florestais. A iniciativa foi assim resumida para a ficha de identificação de experiência:
“O Assentamento Prefeito Celso Daniel está localizado na Estrada de Cabiúnas, na cidade de Macaé. Provem de uma fazenda que produzia cana-de-açúcar para a usina, ou seja, uma terra queimada e mal tratada. Como ainda há produção de canaviais em algumas partes do assentamento, a cultura de queimadas permanece e como muitas vezes ocorre, esse fogo se alastra invadindo plantações vizinhas e matas de entorno.
A Comunidade, preocupada com os estragos provocados pela queima, debateu este assunto em assembléia e levantou a proposta de formar uma brigada, foi então que nasceu o Núcleo Comunitário de Defesa Civil, Brigada Ambiental. O grupo formado entrou em contato com a Defesa Civil de Macaé, junto a Prefeitura, que prontamente apoiou a iniciativa oferecendo materiais e cursos, como primeiros socorros e de brigada de incêndio.
O núcleo é formado por diversas pessoas do assentamento, que se reúnem de 15 em 15 dias. Quando ocorre um incêndio é feita a comunicação entre os membros para acionar o controle dos focos de fogo. Em sua constituição também se propuseram a atuar no controle da caça e na proteção dos remanescentes de floresta. Com a formação do grupo, logo a noticia se espalhou inibindo a presença de caçadores nessas áreas do entorno do PA.
Em 2008 desenvolviam trabalho com educação ambiental, através de visitas aos lotes, procurando conscientizar os agricultores sobre os males do fogo e sobre os riscos da queima do lixo doméstico, sem maiores cuidados; Trabalham com os temas da transição para a agroecologia, como sistemas agroflorestais e orientações para redução de uso de agrotóxicos, além de recuperação de margens dos rios.
“Com os assentados, no inicio, foi um difícil dialogo, mas com o tempo tornaram-se conscientes, sentando e resolvendo os problemas; fotografando os danos causados e indo em busca dos direitos que lhes cabem”. Informou o Gilmar, numa entrevista à Equipe do projeto de Articulação pela Agroecologia no Rio de Janeiro.
O número de queimadas diminuiu consideravelmente e os benefícios são notados por todos. As áreas de Preservação Permanente já apresentam melhoras visíveis e chamou a atenção do pessoal para adequação ambiental dos lotes e para a criação de um viveiro de mudas florestais pensando na recuperação das áreas atingidas.
O trabalho de interação com a cidade, buscando-se enxames de abelhas e trazendo para área afastada dentro do Assentamento foi adotado como atividade econômica pela cooperativa do Assentamento, passando a envolver outros produtores e suas famílias.
Por conclusão, parece que se destaca que o processo de Reforma Agrária, mesmo da forma incompleta como é realizada no Rio de Janeiro (no Brasil), ao que não se propõe a alterar a estrutura agrária, servindo apenas a um poder tampão para uma frente das demandas sociais, sinaliza para uma orientação de transição agroecológica, ao que fraciona o latifúndio e multiplica o número de pessoas com poder de decisão sobre a utilização da terra; acrescenta elementos de diversidade cultural, social e econômica e traz inúmeras vantagens, até mesmo para a re-oxigenação do sistema capitalista.
A construção do paradigma agroecológico de produção extrapola em muito às disputas sobre os conceitos arcaicos de sistemas de organização econômica, ao que focaliza a busca de maior compreensão sobre a ecologia da produção, seus ciclos de energia e a possibilidade de progressão de autonomia no processo produtivo, libertando o produtor e a natureza da lógica de haver necessidade de aporte de insumos externos para que se obtenha sucesso no processo produtivo. Preponderantemente por este fato a agroecologia se mostra uma possibilidade que assusta a um determinado setor da indústria capitalista.
O público da Reforma Agrária não tem um pensamento uniforme sobre os distintos sistemas e lógicas de produção. Se situam, predominantemente, na base da descapitalização para o início das suas atividades e por isso tendem às soluções alternativas àquelas propaladas pelas escolas agronômicas convencionais. Por estarem ingressando em ambientes dos quais – geralmente – não guardam histórico e/ou acúmulos de ciclos de trabalho e de produção anerior necessitam de acompanhamento técnico diferenciado, mais intensivo, serviços que em distintas linhas de Governos se fez prover na história recente do País (Projeto Lumiar 1997 a 2000; ATES 2004 aos dias atuais).
Em ambos os programas de assessoria técnica a diretriz de transição agroecológica esteve/está contemplada, demonstrando a compreensão sobre a necessidade de se buscar caminhos de maior sustentabilidade; todavia, de nada adianta a diretriz de um Programa ou mesmo de Governo se não houver na ponta e nos seus elos de transmissão a ressonância necessária para que se alinhem os interesses e os trabalhos.
As adversidades são inúmeras e em parte figuram neste registro; transpô-las depende essencialmente da multiplicação das experiências que se pautem pela referência de buscar a transição. O diálogo que alimenta e faz crescer o movimento pela agroecologia, do qual Dona Maria, Gilmar e tantos outros agricultores já são parte, devidamente registrada.
Alexandre Magno Lopes Gollo
Engenheiro Agrônomo/Cooperativa Cedro